Entrevista | "São 75 anos de colonização, de política de extermínio e de guerra demográfica”, aponta a professora Berenice Bento sobre Palestina

Berenice Bento | Foto: Camila Araujo
Berenice Bento | Foto: Camila Araujo

Há quatro meses, desde 7 de outubro de 2023, o povo palestino vive sob um massacre. São mais de 27 mil palestinos mortos e quase 70 mil feridos, de acordo com informações das Nações Unidas.

Para entender este conflito é preciso compreender o processo histórico de colonização do território palestino nos últimos 75 anos, defende a professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, Berenice Bento.

Pesquisadora do tema, a professora Berenice Bento enxerga que o genocídio é retrato do que aconteceu em 1948. “Isso que estamos vendo agora de maneira televisionada, já havia acontecido em 1948. Não com bombardeios nesse nível e com esse processo de genocídio high-tech, mas foram 511 aldeias destruídas, 750 mil palestinos expulsos de suas terras e 31 massacres. A partir desse momento, toda a política dos sionistas era a ideia de expulsar completamente o povo palestino daquela terra para ter um Estado único, exclusivamente judeu”, observa Berenice.

Ao se manifestar contrária ao massacre de Israel contra o povo palestino, a professora tem sido alvo de diversos ataques. Em outubro de 2023, o deputado federal Gustavo Gayer (PL /GO) inseriu o nome de Berenice, além de outros docentes e estudantes da UnB em uma lista com 132 nomes de ativistas, estudantes, professores, parlamentares, organizações, instituições, partidos políticos, com o objetivo de limitar a possível entrada destas pessoas ou organizações no país americano, por supostamente, terem apoiado publicamente o ataque do Hamas contra Israel no dia 7 de outubro. Já em janeiro deste ano, Berenice Bento foi alvo de ataques nas redes sociais, caracterizando-a como antissemita.

Em nota, a Associação dos Docentes da Universidade de Brasília - Seção Sindical do ANDES-SN (ADUnB-S.Sind) manifestou apoio à professora e apontou que os ataques tratam-se “de uma tentativa de censura à liberdade de pensamento e à liberdade de cátedra”.

A professora informou que nos próximos meses lançará o livro “Dispositivo sionista e seus descontentes: histórias de pessoas judias antissionistas”. No livro, Berenice Bento entrevista pessoas de origem judaica que contam como foi o processo de se tornar sionistas.

Já no dia 21 de fevereiro, Berenice Bento, participa do lançamento do livro “Contra o Sionismo - retrato de uma doutrina colonial e racista”, do jornalista Breno Altman, que também tem sido alvo de ataques.O livro será lançado às 19 horas, no Beijódromo da UnB.

Em entrevista à ADUnB-S.Sind, a docente analisou o contexto do conflito, avaliou as ações do governo brasileiro e destacou a importância da universidade no debate sobre esses temas.

 

Confira abaixo a entrevista completa

 

Professora, na quarta, dia 7 de fevereiro, completam 4 meses do massacre de Israel contra o povo palestino. Mas isso começou antes, você poderia falar brevemente qual é esse contexto?

Não é possível compreender o 7 de outubro sem fazer uma abordagem histórica do processo de colonização da Palestina pelos sionistas como um projeto colonial que nasce na Europa no final do século XIX, em 1897, e no primeiro Congresso Internacional Sionista se delibera pela fundação de um Estado nação do povo judeu. Não há questão alguma em relação ao nacionalismo judaico. O problema é que, a partir de uma concepção colonial, colonizadora, há a construção de um Estado em um lugar que já tinham pessoas milenárias, nativos. Começa-se aí um processo, portanto, de compras, inicialmente de compras de terra, passagem do século XIX para o século XX. Mas esse processo se intensifica, consideravelmente, a partir de 1917 com o posicionamento da Inglaterra, que faz uma declaração assinada pelo ministro de Relações de Assuntos Exteriores, chamado Arthur Balfour.

Nessa declaração diz que vai apoiar a construção de um Estado judeu na Palestina. Intensifica-se o processo de colonização, intensifica-se o processo de expulsão. Mas o momento realmente de grande tensão é em 1947, quando a ONU também delibera dividir uma terra, sem consultar os povos nativos - os palestinos, e dar parte da terra para os sionistas. Não satisfeitos com o resultado, começa-se um processo de expulsão, que é um processo de limpeza étnica, dos originários da Terra.

De final de 1947 a meados de 1948, acontece a expulsão de 750 mil palestinos. Isso que estamos vendo agora de maneira televisionada aconteceu em 1948. Não com bombardeios nesse nível e com esse processo de genocídio high-tech, mas foram 511 aldeias destruídas, 750 mil palestinos expulsos de suas terras e 31 massacres. A partir desse momento, toda a política dos sionistas era a ideia de expulsar completamente o povo palestino daquela terra para ter um Estado único, exclusivamente judeu.

Então, o que significa isso? O que era Gaza? Hoje, Gaza é um escombro atrás de escombros, mais de 2 milhões de pessoas vivendo em tendas com tudo destruído. Mas Gaza era uma prisão - e algumas pessoas discordam dessa definição de prisão, definiam Gaza como um campo de extermínio, e trabalham teoricamente com esse termo - formada até 7 de outubro do ano passado, por 70% de refugiados, pessoas que tiveram suas terras roubadas, tiveram seus parentes assassinados. Então, é impossível entender a fúria dos grupos de resistência e o que está acontecendo agora se nós não entendermos o que é Israel.

Israel é um Estado que pratica internamente para os palestinos que conseguiram ficar em suas casas, apartheid, portanto, tem um corpo legal diferente para os israelenses judeus e os israelenses palestinos. Tem política de segregação legal. Por outro lado, têm os territórios ocupados, porque você tem 1947, 1948 e a ofensiva de 1967, onde a Cisjordânia, a faixa de Gaza, Jerusalém Oriental passam ocupadas militarmente por Israel. E a legislação, a lei que organiza e disciplina a vida dos ocupados é uma lei militar. Então, esse é o contexto do 7 de outubro: 75 anos de colonização, de política de extermínio e de guerra demográfica continuada.

Ao passo que o povo palestino sofre com um massacre e todas as violações de direitos humanos, existe um silenciamento não apenas midiático, mas também na sociedade e de governos sobre essa situação. Como você avalia esse debate na sociedade e também o papel do governo brasileiro diante deste cenário? O governo poderia ou pode fazer mais?

Ao meu ver, o governo brasileiro, pensando em termos de Estado, é bastante complexo, porque nós temos um parlamento com maioria sionista, que diz que não tem genocídio, que falam que os palestinos, apenas por serem palestinos, são terroristas.

O governo tem posições que são muito interessantes. Mas existe uma tensão forte dentro do governo, que não permite que haja um avanço. Por exemplo, o governo Lula afimou algumas vezes que está acontecendo um genocídio. Ora, se você diz que é um genocídio, enquanto representante de um governo legitimamente eleito, o ato seguinte deveria ser tomar providências para interromper esse genocídio. Quando o Brasil estava no Conselho de Segurança da ONU, tentou aprovar resoluções de cessar-fogo. Não conseguiu, mas de fato fez movimentos.

Se é definido como um genocídio, a primeira questão deveria ser o rompimento de relações diplomáticas, ou no mínimo, chamar o representante desse Estado genocida para dar esclarecimentos. Bom, não foi feito isso e a gente tinha como hipótese que é porque nós tínhamos brasileiros e suas famílias, seus familiares, em Gaza. O Estado conseguiu retirar as pessoas que estavam presas em Gaza, a partir da negociação super tensa com o governo de Israel. Não aconteceu mais nada. E depois tem a adesão à demanda da África do Sul, junto à Corte Internacional de Justiça em Haia, pelo pedido de abertura de processo do que está acontecendo em Gaza, apontando que ali está acontecendo o genocídio. O Brasil é signatário desse pedido de abertura de processo. Tem movimentos que eu acho que são interessantes.

No entanto, quando a gente fala de genocídio, por exemplo, existe a necessidade do rompimento (coisas práticas do campo da política) para fazer uma pressão da comunidade internacional para que Israel fique isolado politicamente. Por exemplo, o rompimento dos acordos militares que foram firmados na época do Bolsonaro com o governo de Israel. Houve um compromisso nesse sentido com alguns parlamentares em reunião, mas até agora, até onde eu saiba, não foram rompidos esses acordos militares. Então, precisam ter mais consequências diante de um diagnóstico tão dramático, está acontecendo um genocídio diante dos nossos olhos.

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Qual o papel da universidade diante deste cenário?

A universidade tem muitos papéis no sentido da formação. O sionismo se utiliza o tempo inteiro da acusação, difamação, por exemplo, de dizer que aqueles que criticam o Estado de Israel, e, principalmente as pessoas que estão engajadas na denúncia sistemática do genocídio, são pessoas antissemitas e que portanto odeiam o Estado que representa o povo judeu.

O que nós temos observado é justamente a mobilização global de pessoas judias, antissionistas, que dizem muito claramente: ‘olha, esse Estado não nos representa’. O Estado Israel não pode assumir para si a totalidade, a representação total do povo judeu. Então, essa discussão a gente faz na academia, o que é a definição de antissemitismo, como lutar e estudar expressões do antissemitismo. A universidade teria que ter um papel de protagonismo, porque, de fato, na guerra global que acontece contra o povo palestino, uma das armas fundamentais que as narrativas sionistas têm acionado é a falta de informação. É tentar, por exemplo, fazer um corte cirúrgico, tudo começou em 7 de outubro.

Então, a gente vem e diz: ‘olha a gente pesquisa, a gente estuda, a gente conhece o que foi a Nakba’. A Nakba é como se fosse o holocausto do povo palestino. Esse processo de conhecimento, de formação, a universidade tem um papel estratégico, que ao meu ver é muito tímido.

Por outro lado também, o que acontece, e ao meu ver é um dos efeitos dessa perseguição, que eu tenho falado muito nos meus artigos, nas minhas conferências, que é um processo de palestinização do mundo. Imagina um palestino brasileiro, que de repente critica o Estado de Israel, diz que é um Estado genocida, colonial. Na perspectiva do Estado de Israel, essa pessoa que faz essa crítica está sendo antissemita, porque ela não tem direito de fazer essa crítica. Isso no campo da universidade é uma coisa muito impressionante, porque é uma tentativa sistemática de silenciar a liberdade de pensamento, a liberdade de crítica, que é a alma, que é o tutano da existência da universidade.

Sem liberdade de pensamento, pode fechar as universidades. Sem a liberdade de crítica, pode fechar as universidades.

Então, mas eu acho que a perseguição é tamanha, como nós vimos nos Estados Unidos, onde reitoras foram demitidas porque foram acusadas de antissemitismo, porque estavam acontecendo manifestações pró-palestinas nos seus campos e elas não fizeram nenhum tipo de atitude para barrar o que eles chamam de atos antissemitas. A universidade cumpre um papel fundamental nessa perspectiva da liberdade do pensamento, da liberdade crítica e de pesquisas fundamentadas.

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Você e outras pessoas, como o caso do jornalista Breno Altman, têm sido vítimas de ataques nas redes sociais, mas também fora dela. A quem servem esses ataques? E qual a importância de denunciar essas violações?

O Breno Altman é um jornalista judeu que teve parte da família exterminada nos campos de extermínio nazista. E como milhões de judeus por todo mundo, afirma que as ações de Israel não o representam. ‘Vocês não podem fazer isso em meu nome. Esse projeto colonial, esse projeto genocida que vocês projetam, esse genocídio que vocês estão fazendo, não em meu nome’, diz ele. E é um jornalista que tem conhecimento nas minúcias, nas entranhas do que é o sionismo. Quando Breno faz aproximações do nazismo, sionismo, fascismo, como ideologias supremacistas, coloniais, racistas. Não é algo da boca para fora. 

O processo de constituição do Estado de Israel foi a partir de acordos com suporte e com apoio das grandes burguesias globais. Não existe guerra de libertação nacional do povo judeu. Isso não existe. Porque, inclusive, um dos grandes líderes sionistas, David Ben-Gurion, chega na Palestina apenas com 21 anos. Não é uma luta dos judeus nativos da Palestina para formar um Estado judeu. É importantíssimo falar sobre isso. Tem-se, durante séculos, uma coabitação de profundo respeito na Palestina, que é formada por judeus, cristãos, muçulmanos, otomitas, várias religiões que coabitavam, que conviviam. O sionismo faz um giro de 180 graus: ‘é um Estado só para judeus, então vamos expulsar todos, todos os árabes’, como eles falavam, a ponto de produzir uma ficção de dizer que era uma terra sem gente. Construíram uma narrativa histórica mentirosa.

Nesta construção da história, Breno Altman é uma das figuras como centenas no Brasil, como o Coletivo Vozes Judaicas pela Libertação, que dizem o seguinte: “precisamos libertar o judaísmo do sionismo, porque o sionismo é a antítese, a negação do judaísmo”. O judaísmo é uma religião, uma cultura, um povo que foi formado na diáspora e que teve, portanto, na coabitação e lidar com a diferença, um elemento fundamental.

Parte considerável do que entendemos por justiça social, luta por justiça, por igualdade, é oriundo de pensadores judaicos, como Walter Benjamin, Karl Marx, Freud, Hannah Arendt, Primo Levi. Atualmente, temos Judith Butler, uma teórica antissionista, de origem judaica. Essas pessoas são hoje perseguidas como qualquer outra.

Para nós que estamos na universidade, engajados nas nossas lutas por reparação, por memória, por cotas, todas essas disputas que a gente faz no campo da universidade e fora da universidade ter o nome identificado como antissemita, significa dizer que eu tenho ódio a uma pessoa porque ela é de origem judaica. Isso é muito sério, isso não pode ser banalizado.

Então isso, o que acontece com o Breno Altman, uma escala de uma intensidade muito maior, está acontecendo em vários níveis, e meu nome continua sendo exposto publicamente.

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Você vai participar no dia 21 de fevereiro do lançamento do livro do Breno Altman na UnB, qual a importância de trazer esse debate para dentro da universidade?

O livro do Breno é fundamental porque é um judeu falando, deixando muito claro o que é o sionismo. Trazer esse debate para a universidade é produzir um ruído, um estrondo, vamos chamar assim, na narrativa dos sionistas. No Brasil hoje, de fato, quem tem realmente a maior identificação ideológica, portanto, racista, com o sionismo são os bolsonaristas.

Então, os bolsonaristas, as lideranças bolsonaristas são todos sionistas. Quem defende o genocídio, são os mesmos no Brasil que há muito pouco tempo atrás diziam todas aquelas agressões, contra as mulheres, os negros, os LGBTQIA+, são as mesmas pessoas que apoiaram o governo, que negou a existência da Covid, que foram mais de 700 mil pessoas mortas. São as mesmas pessoas. Então, pensar que essas discussões sobre a Palestina, a perseguição por nós estarmos engajados na luta, em apoio e solidariedade ao povo palestino, não está desconectada das nossas lutas específicas aqui.

 

Publicado em 08 de fevereiro de 2024

Fonte: Comunicação ADUnB-S.Sind
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