A pandemia e a Universidade de Brasília
Certamente este momento em que o mundo enfrenta uma grave pandemia, com consequências sanitárias e econômicas monumentais, diz muito sobre como o mundo e nosso País funcionam, ou seja, diz muito sobre as condições gerais pré-existentes à pandemia.
A pandemia assola todas as regiões do mundo, mas a forma como cada país enfrenta o problema está diretamente ligada à sua estrutura social, diz muito sobre o acesso à saúde e nos informa sobre como seus governos funcionam.
O Brasil é profundamente injusto, marcado por desigualdades estruturais e omissões do Estado na vida da maioria da população. O esforço inclusivo feito pelos constituintes de 1988, a partir das pressões dos movimentos sociais, tem sido desconstruído, sendo a aprovação da Emenda Constitucional 95 um dos acontecimentos mais graves desse processo. O já deficitário sistema de saúde, de caráter universal, vem sofrendo com sucessivas diminuições de recursos nos últimos anos. E é justamente o Sistema Único de Saúde (SUS) que está sendo posto à prova no momento de uma pandemia e que, se tivesse o devido investimento orçamentário, estaria cumprindo completamente seu importante papel no enfrentamento à Covid-19. Ao contrário disto, temos hoje verdadeiros heróis, profissionais da saúde, lidando com toda espécie de dificuldades.
O vírus não escolhe a classe social de quem vai infectar ou matar, mas o acesso aos serviços necessários para tratar dos seus efeitos é desigual. Uma contaminação que começou nos mais ricos e nas classes médias, que haviam viajado para países onde o vírus já circulava, hoje se espalha em todas as partes da cidade em ondas na direção dos bairros populares e das periferias precárias e vulneráveis e já está presente em todos os estados.
Não existe vacina e isso vai levar um tempo considerável, mesmo com os esforços mundiais para acelerar a sua descoberta, testagem e posterior fabricação. Por enquanto, o único instrumento eficiente para que o sistema de saúde não entre em colapso diante da explosão de casos é o distanciamento social. Isolados, mesmo que parcialmente, diminuímos o contágio e esticamos o tempo de incidência da doença, dando tempo para estados e municípios melhorarem suas estruturas de atendimento à saúde e para hospitais oferecerem leitos para os casos mais graves, reconhecendo a importância do investimento na saúde pública.
Além dos desafios sanitários, a implementação de isolamento social significa paralisar as atividades econômicas e isso tem fortíssimo impacto, seja em economias fortes e, mais ainda, numa economia que estava com crescimento pífio nos últimos anos, como no Brasil. Assim, a paralisação das atividades e a diminuição de circulação de pessoas, mesmo que de forma muito parcial (em média algo em torno de 50% de diminuição de circulação foi o conseguido até o momento) impactou rapidamente a economia e a vida de milhões de brasileiros, principalmente os que estavam desempregados, haviam voltado à linha da pobreza recentemente e viviam no mercado informal, altamente dependente da circulação de pessoas.
A pandemia exigiu dos governos duas providências: salvar vidas e proteger a renda das pessoas. Para salvar vidas é necessário investir na criação de estrutura hospitalar emergencial para atender os infectados, garantindo insumos e materiais de proteção. Para proteger a renda são necessárias ações emergenciais de renda básica, de preservação dos empregos, de apoio a pequenas e médias empresas, sem o que se torna impossível implementar o isolamento social efetivo (que deveria ser de, pelo menos, 70%).
E neste momento é que sentimos o prejuízo de sermos governados por um presidente negacionista dos preceitos da ciência, focado em governar para um pequeno segmento privilegiado da sociedade e mais preocupado em evitar o desgaste político de uma crise econômica. A exemplo de poucos governantes, o presidente do Brasil trabalha na direção contrária às recomendações da OMS e em caminho distinto do que outros governos implementam. Nega a gravidade da pandemia e critica as medidas de isolamento, demitiu seu ministro da Saúde por defender essas medidas, criticou governadores e não criou as condições para que o governo federal ajudasse estados e municípios, seja com recursos, seja com a aquisição massiva de testes e Equipamentos de Proteção Individual (EPIs).
Em termos econômicos, tendo como um dos seus suportes um ministro alinhado com os interesses do mercado financeiro e implementador de uma política de austeridade cruel, o governo até agora foi mais eficaz em proteger os bancos do que pagar parcos 600 reais aos atingidos pelo desemprego e queda de renda. Conseguiu aprovar medidas de fragilização da relação empregatícia e faz de tudo para que o isolamento social seja rompido, inclusive com exemplos pessoais que colocam em risco a saúde dos que cumprimenta em suas incursões.
Felizmente o Supremo Tribunal Federal (STF) impediu que o governo federal revogasse as medidas acertadas e que foram implementadas pelos demais entes federados. Porém, além do mau exemplo presidencial, os governadores e os prefeitos sofrem a pressão de parte do empresariado, mais preocupado em retornar seus lucros, mesmo que arriscando a vida de milhões de trabalhadores. Não há uma mensagem firme, não temos uma liderança no combate à pandemia, temos um governo que faz parceria com o vírus, estimulando sua disseminação.
No Distrito Federal, o governador briga com a justiça, bastante apoiado pelos presidentes da Fecomércio e da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL), para flexibilizar as medidas de isolamento. As pressões de empresários argumentando prejuízos econômicos, certamente são reais, mas a saúde da população no geral, em sua maioria prejudicada financeiramente há bastante tempo, não pode ser colocada abaixo das necessidades econômicas de grupos mais abastados.
Infelizmente, milhares já morreram e outros morrerão. Os sistemas de saúde de muitos estados e municípios brasileiros, nesse início de maio, antes do pico da doença, já entraram em colapso, como vemos nas notícias sobre Manaus e Belém. O colapso do sistema de saúde aumentará a letalidade da doença e hoje muitos já morrem sem nem conseguir acessar a porta de entrada do hospital, ficam em casa e lá falecem. Nem entram nas estatísticas oficiais, por falta de testagem. Em algumas cidades até o sistema de enterros entrou em colapso.
Defendemos políticas de isolamento social rigorosas e ancoradas em monitoramento por especialistas, por pesquisa, pela ciência. A vida vale mais do que o lucro. A vida vale mais do que tudo. E a vida deve ser a prioridade de quaisquer governantes, para isso foram eleitos e não para protegerem lucros empresariais.
Defendemos o fortalecimento do Sistema Único de Saúde e de Assistência Social. Muito atacados pelo governo federal, se mostraram esteios fundamentais e imprescindíveis a serem defendidos e revalorizados. Ricos não podem ter mais chances de atendimento do que um pobre, não é isso que reza nossa Carta Magna. Por isso é urgente que tenhamos fila única de acesso a UTIs, contabilizando leitos públicos e privados e a proteção social devida para aqueles em situação de vulnerabilidade e risco social.
Defendemos proteção da renda e do emprego dos brasileiros. Para isso é necessário prorrogar a ajuda emergencial até o final do ano de 2020, rever a política aprovada no parlamento que permite reduzir renda dos assalariados. É necessário aplicar recursos na compra de testes, EPIs, medicamentos e estruturação de leitos e contratação de profissionais de saúde. Para isso é necessário que os mais ricos contribuam no meio dessa crise. É absurdo jogar o ônus nos servidores públicos. Taxar as grandes fortunas, como outros países estão fazendo é um caminho correto e justo.Universidades públicas
É nesse momento de pandemia que o povo brasileiro sente o quão são importantes as universidades públicas. São nessas instituições que são feitas as pesquisas sobre o coronavírus, é onde se busca desenvolver vacinas, onde são testados medicamentos já existentes. E é delas uma parte relevante dos hospitais de referência no tratamento dos infectados graves.
Mas são essas universidades que tiveram seus recursos suprimidos sistematicamente, inclusive aqueles destinados à pesquisa. Leva mais tempo remontar o que foi desmontado e fragilizado ano após ano. Muitos de nossas colegas estão na linha de frente nos Hospitais Universitários, nossos residentes passam por prova de fogo, sendo acelerada a formação médica em meio ao caos dos sistemas de saúde, nossos cientistas se esforçam para produzir conhecimento sobre o vírus e para converter estruturas existentes para produção de EPIs e insumos básicos para unidades de saúde. Fazemos a nossa parte, mesmo diante de enorme precariedade.
A Universidade de Brasília (UnB), demonstrando de modo inequívoco o compromisso social da universidade pública, criou o Comitê de Pesquisa, Inovação e Extensão de combate à Covid-19 que já aprovou mais de 100 projetos relevantes de pesquisa e ações engajados precisamente no enfrentamento da crise sanitária. Estes projetos precisam de recursos para serem viabilizados e este tem sido o esforço do Comitê. Em contrapartida e na contramão disso, o Brasil ficou de fora da aliança para acesso a tratamentos da OMS em função da falta de interesse do governo federal, inclusive com declarações ofensivas ao órgão máximo de saúde no mundo.
A maioria das universidades públicas, na área de ensino, estão com atividades paralisadas. E, em muitos estados existe forte pressão para o retorno das atividades. Qualquer retorno depende de indicadores científicos, do comportamento da doença, mas também dependerão da criação de condições de trabalho que garantam nossa segurança, que não transformem as universidades em polos de contaminação. Somos comunidades gigantes, cidades dentro das cidades, com aglomerações cotidianas e isso deve ser levado em conta. Sem segurança de trabalho, um retorno apressado nos colocará em risco a nós docentes, aos técnicos e aos nossos estudantes.
Portanto o retorno às atividades presenciais na UnB, no momento que isto for indicado, deve ser acompanhado de um cronograma, de medidas que impeçam a propagação da doença e da implementação de protocolos sanitários rígidos. Para tal, a Associação dos Docentes da UnB (ADUnB) se propõe a acompanhar e participar, de forma qualificada, com proposições e encaminhamentos, junto à administração superior da UnB, ouvindo os docentes em suas expectativas e recolhendo contribuições fundamentais nesse processo.
Publicado em 14 de maio de 2020