Onda conservadora brasileira tenta barrar os direitos e a defesa das mulheres
Em votação de resolução contra a discriminação e a violência contra as mulheres e meninas, o Brasil não defende os direitos das mulheres. Para professora da UnB, Valeska Zanello, a onda conservadora, capitalista e racista atinge as mulheres no Brasil.
O posicionamento da diplomacia brasileira na Organização das Nações Unidas (ONU) nas últimas semanas demonstra que a pauta conservadora religiosa têm avançado sobre os direitos e conquistas das mulheres no país. A professora de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB), Valeska Zanello, alerta que a onda conservadora tem atuado no legislativo brasileiro por meio de projetos contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, como o direito ao aborto (mesmo o legalizado), e que há o um desinvestimento do Estado no combate e no atendimento às mulheres em situação de violência.
Na ONU, o Brasil esteve alinhado nas últimas semanas a nações ultraconservadoras - como Egito, Paquistão e Arábia Saudita - nas negociações para o veto a garantias de direitos sexuais e reprodutivos e também da educação sexual a mulheres e meninas, da resolução de combate à discriminação e à violência que incidem sobre as mulheres e meninas no período da pandemia da Covid-19. Na reunião de votação, ocorrida na sexta (17), o Brasil usou da estratégia do silenciamento e abstenção, não defendendo os direitos das mulheres. No entanto, apesar da investida conservadora, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou a resolução por consenso.
Para Zanello, o posicionamento brasileiro demonstra o investimento da pauta conservadora evangélica contra a posição ativa da mulher em relação à sua vida reprodutiva. Ela alerta que esse é um movimento que está acontecendo na política interna do país, por meio de projetos de lei no Congresso Nacional, por exemplo, que tentam proibir o acesso ao aborto legal, mesmo em situações já previstas, como nos casos de estupro, anencefalia e do risco à saúde e à vida da mulher.
A professora e pesquisadora diz que existe uma tentativa de barrar o avanço de direitos fundamentais para a saúde sexual e reprodutiva das mulheres. “Temos que pensar histórica, cultural e politicamente. Um aspecto fundamental para no avanço do capitalismo é o sexismo, pautado em um determinado lugar social onde as procriadoras, as capazes de procriar, as portadoras de útero foram colocadas”.
Ela afirma ainda que a interseccionalidade dos direitos das mulheres deve ser tratada pela compreensão de raça e gênero. “O Brasil é um país profundamente desigual, com profundas violências estruturais, das quais eu considero o racismo e o sexismo talvez as mais violentas. É um racismo configurado também com a questão de classe social, uma racialização da pobreza. Ou seja, isso impacta diretamente nas mulheres negras e pobres, que são exatamente as mulheres que mais morrem pela recorrência de aborto inseguro, por exemplo”.
Educação sexual
A professora Zanello explica que é fundamental a defesa da educação sexual contra a discriminação e a violência contra mulheres e meninas. Segundo ela, é por meio da educação sexual que o Estado pode auxiliar a criança e o adolescente a sair de situações de violência.
“A educação tem um papel fundamental sobretudo em um país onde a gente tem tamanho índice de violência sexual e de estupro. A maior parte, mais de 50% dos estupros no Brasil, ocorrem dentro de casa e são cometidos por parentes ou por pessoas próximas. A escola é a chance que o Estado tem de mudar a história e repetições intergeracionais. Ou seja, é a chance que o Estado tem de fazer diferente, de trazer saúde e um outro desfecho”, afirma.
“O que esse governo tem feito com as pautas das mulheres é um desmonte completo, em várias esferas. O direito sexual reprodutivo, infelizmente, é só uma dessas pautas. A gente percebe o desmonte, o desinvestimento econômico, político, por exemplo, também no combate e no atendimento às mulheres em situação de violência”, pondera. Para ela, existe ainda uma banalização do debate sobre o direito e conquistas das mulheres e cita a atuação da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que afirmou que ‘menina veste rosa e menino veste azul’. “Ela critica os estudos de gênero sem ao menos conhecer o que tem sido produzido por esse campo em estudos científicos há pelo menos 50 anos”.
Relatório da ONU
A pandemia está colocando em risco a luta pela igualdade de gênero. Isso devido à crise de desenvolvimento humano e seus efeitos imediatos que surgem em diferentes dimensões como educação, saúde e violência de gênero.
De acordo com o relatório produzido pela equipe de gênero do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pelo Escritório do Relatório de Desenvolvimento Humano, apesar da crise afetar todas as pessoas, as mulheres e as meninas enfrentam riscos adicionais devido a desigualdades, normas sociais e relações desiguais de poder profundamente arraigadas.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, chegou a dizer que a pandemia da COVID-19 tem um rosto feminino. “São as mulheres que mais sofrem ameaça a direitos e liberdades, são elas as mais afetadas no ambiente de trabalho, já que são maioria das trabalhadoras em saúde. Elas são também a maioria das trabalhadoras domésticas, temporárias e em serviços de pequena escala que devem desaparecer nos próximos três meses, de acordo com projeções da Organização Internacional do Trabalho (OIT). É por este motivo que precisamos de sociedades mais igualitárias”, disse, em artigo publicado em abril, no site da ONU.
Valeska Zanello possui graduação em Filosofia pela Universidade de Brasília (2005), graduação em Psicologia pela Universidade de Brasília (1997), e doutorado em Psicologia pela Universidade de Brasília (2005) com período sanduíche de um ano na Université Catholique de Louvain (Bélgica). Professora Associada 1 do departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília. Coordenadora do programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura (PPGPSICC)/UnB.
Publicado em 19 de julho de 2020